O triste olhar da esquecida idade

Já não é novo o consenso que concebe a ideia de que a terceira idade é a melhor idade. Tenho muitas dúvidas sobre as razões que possibilitaram a criação de tal slogan. Como socióloga, é praticamente um dever profissional desconfiar de certas generalizações do senso comum. Sem perder a oportunidade, seríamos melhores humanos se não fosse um objetivo exclusivo da sociologia e das ciências sociais afins o questionamento dos valores e rumores culturais. Enfim, cuido do slogan: para pessoas que trabalharam ao longo da vida em empregos médios e conseguiram relativamente salvar certa grana para o tão desejado período pós-aposentadoria, vindo este a partir dos 60 ou 65 anos de idade, é coerente afirmarmos que a terceira idade é, sem dúvida, a melhor das idades. Período que será tão bem aproveitado até quando o tempo permitir (tempo é substituível por Deus [e seus "homônimos], saúde [e todo seu conteúdo], grana, tédio, filhos etc.). 
Porém, dentre tantas verdades sobre a terceira idade, fato é que a cada nova(o) velhinha(o) que faz mais um aniversário, tornando-se o ser mais ancião registrado no mundo, alargamos mais o período que chamamos de terceira idade. Neste sentido, torna-se cada vez mais delicado uniformizar momentos da vida tão amplos e distintos entre si. 
Digo isto porque hoje vivi um momento bastante desagradável. Aguardava ser chamada para a sala de fisioterapia, minha mais nova rotina para as próximas semanas graças ao querido joelho, quando uma das fisioterapeutas chamou o Seu Alceu. Sem resposta. Chamou novamente. Nada. Terceira vez... Surge no início da sala de espera, praticamente no encontro da outra sala, um velhinho, bem idoso mesmo, caminhando em seu tempo. Aquele era o Seu Alceu: homem alto, hoje curvado, branco, de expressão forte, cabelos brancos entre uns pretos que se esqueceram de branquear e sua bengala. A fisioterapeuta questiona se era ele o Alceu - acredito que como eu, seja seu primeiro dia, já que os demais pacientes são tratados de forma cordial com intimidades brasileiras - uma voz feminina responde: Sim, Alceu! Quando noto a presença de uma mulher quase terceira idade como seu Alceu que lhe apoiava por trás, fazendo-o caminhar com mais segurança.
Beleza, seu Alceu entregue, ato concluído! Eu deixo de observar a vida alheia e retorno à revista após o instante de distração. Mas não por muito tempo. Passados uns 3 minutos no máximo, retorna a fisioterapeuta a procura da acompanhante de seu Alceu. Bastou!
Foi o necessário para mentes brilhantes, como a minha e a do senhor ao meu lado, funcionarem para o mal. É incrível como somos seres apaixonados por um espetáculo, sendo este dramático melhor ainda. Começamos a cogitar o que poderia ter acontecido com o velhinho. Nessa altura a revista perdeu a graça, dando lugar à realidade que estava mais empolgante. E nada da acompanhante. A essa altura, eu pouco controlava minha tagarelice e fofocagem e quase me pus a perguntar a fisio. o que havia acontecido. Não resisti e esbocei com o senhor ao meu lado, na verdade, respondi sua pergunta, ele foi mais incontrolado que eu - e dizem que são as mulheres as fofoqueiras, outro falso senso.
Mas a realidade foi pior do que eu consegui imaginar. Sério, passou pela minha cabeça que o velhinho teria desmaiado ou algo, não passou que ele tivesse morrido. Porém, fisicamente, ele não morreu. Socialmente, para mim, sim.
Antes mesmo da acompanhante reaparecer na sala - sabe lá Jah onde esta mulher foi - um funcionário da clínica entra a sala pelo corredor principal, puxando uma cadeira de rodas pela parte de trás, como se fosse uma mala de rodinhas. Ali, sentado e sendo arrastado, seu Alceu, com o olhar mais triste do mundo, cabisbaixo e indigno daquela condição de ser arrastado como um grande objeto que agora ocupa um cantinho da sala, ao lado da bancada de recepção da fisioterapia, aguardando calado e com o olhar no horizonte, sua acompanhante. Fiquei muito triste e muito constrangida. Neste ínterim, seu Alceu ainda precisou lidar com uma alma miserável, embora solícita. Uma das recepcionistas, sabendo o que havia acontecido lá dentro, ofereceu-lhe um copo da água. Prontamente ele respondeu "Não!" Soou tão igual a um "Me deixa em paz, queria estar em casa."
Acredito ter passado dois ou três minutos quando ressurgiu a acompanhante perguntando o que havia acontecido. Daí, naquela saleta, éramos todos ouvidos, além de curiosos, preocupados em saber o que então tinha acontecido com seu Alceu para sair tão rapidamente da sala de fisioterapia. Me espantou o silêncio que prevaleceu no ambiente, antes recheado de burburinhos, nesse momento além da fisioterapeuta, apenas a repórter na TV ousou falar junto, mas a ela não sobrava mais nenhuma atenção. Todos os ouvidos estavam voltados à primeira.
"Seu Alceu vomitou lá dentro, mas por que mesmo? Porque não comeu nada!" A acompanhante prontamente respondeu, a fim de se livrar do esporro indireto: "Eu disse a ele que ele tinha que comer, não quis, vou fazer o quê?" "Pode isso seu Alceu?" O velho já puto de ser tratado igual criança, respondeu sem gritar: "Não tô com fome, vou comer pra quê? Vamo acabar logo com isso, quero ir pra casa!" A essa altura quem não iria querer? Deixaram um representante da melhor idade, largado, esquecido em um canto, enquanto sua (ir)responsável não aparecia; expuseram sua sensível condição a todos que quisessem ouvir; trataram-no feito criança. E quem ele era? Que importava sua dignidade? o que importa é a saúde. Qual a conclusão que as duas senhoras chegaram acerca do destino de seu Alceu? Não foi naquele instante pra casa, antes iria fazer a fisioterapia. Por coincidência ou destino, fui chamada na segunda vez que seu Alceu entrou pra sala de fisioterapia.

Comentários

Postagens mais visitadas