Infância embrulhada em bala Juquinha

Ela entrou no vagão e trouxe mais quatro, três precisamente, Stéphany já vinha só. Uma ainda não falava, os do meio estavam aprendendo a ser gente e toda hora ela os corrigia ou reprimia sua vontade pulsante de simples movimento. Andavam pelo vagão ou então ameaçavam sair do trem a cada nova estação. E Stéfany, embora aparentando algo em torno de dez anos, trazia nas costas uma grande mochila carregada de roupas, fraldas, apetrechos e responsabilidades de ser a irmã mais velha e a auxiliar de sua própria mãe.
Naquele instante de nossa convivência, a ela era negada a infância em troca do cuidado dos irmãos, algo não muito debatido ou conversado, apenas a natural cadência da realidade e sua mãe não deixava de reconhecer sua infância, apenas precisava confiar a ela a guarda partilhada de seus irmãos, pois sozinha o fardo era enorme, ainda mais sob o temporal que caía lá fora. Eles todos entraram encharcados no vagão. Os pés das crianças enrugados entre as fitas das gastas havaianas. 
Diante de toda a dificuldade daquela mulher negra, cujo olhar transmitia um misto de cansaço latejante e de dignidade, sua expressão poderia ser de lamento, mas era de alegria. O baleiro passou vendendo Juquinha. Ela pediu a tradicional, do seu tempo, a amarelinha, comprou e as crianças, inclusive Stéphany, entraram em polvorosa. Aquela mulher sabia confortar os filhos, especialmente naquele dia frio e chuvoso. Stéphany ganhou três balinhas, os demais uma, até a bebê que mal sequer tinha dentes, a mãe trabalhou seu paladar para o doce do seu tempo, dividindo em quatro partes para ela, porém para minha surpresa, ela já identificava o sabor e o prazer da balinha. 
Todos aprovaram o presente da mãe no momento que meu contato/invasão visual já era indisfarçável. Ela conversou comigo sobre o quanto aqueles meninos davam trabalho, ao mesmo tempo em que pregava um deles no banco, porém impossível mantê-lo sentado, o movimento devia ser instintivo para aquecer naquele frio todo.
Na hora da despedida, eu e Stéphany trocamos olhares, ali tentei transmitir toda minha empatia e compreensão, a ajudei a colocar a alça da enorme mochila nas costas e lembrei das tantas vezes que fui incumbida a ajudar minha mãe nos cuidados do meu irmão, interrompendo um pouco a infância, mas aprendendo o valor da cumplicidade e criando laços de confiança com minha mãe, ainda é isto, né, a história das mulheres cuidadoras nos pegou em parte por sermos as mais velhas. e, por óbvio , mulheres.
Eles levantaram, a mãe acompanhou meu gesto e agradeceu por Stéphany, que saiu primeiro, sem se despedir, pois tinha que ajudar a descer seus irmãos - em algumas estações há um desnível entre a plataforma e o trem de quase 30 cm sem contar a distância. Todos desceram, voltaram para a chuva com um gostinho de bala Juquinha na boca, inclusive a mãe que certamente resgatou no doce um pedacinho da sua infância, há muito perdida.



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