Inimigo do Trem

Ele congelou no meio do vagão. Seu sapato de couro, roto, possuía uma espécie de fivela dourada, cujo formato era abstrato aos meus olhos, e brilhava. A desbotada calça jeans compunha sua indumentária, bem como uma blusa polo azul portadora de algum desses logos de "roupa de marca". O trem chegava à estação justamente no momento em que eu olhei para o seu rosto. Havia um olhar assustado, ou melhor, receoso e, ao mesmo tempo, malicioso. Não queria ser pego; afinal, sua mercadoria custou dinheiro. Era um investimento. Através de sua venda, conseguiria os necessários trocados diários que lhe permitiriam comprar uma comida, ou somar na conta da luz, ou tomar uma cervejinha na porta de casa no fim do dia. A cada metro adentrado na estação, seus olhos rapidamente se deslocavam em busca da figura do carrasco - nessa profissão, até hoje, não vi nenhuma mulher. O homem, vestido de colete amarelo florescente, é investido de autoridade o suficiente para retirá-lo do vagão, consequentemente, da estação e, por óbvio, impedir as vendas. Fica, nas entrelinhas do cotidiano, o (abuso de) poder de tomar sua mercadoria, pela ausência de nota fiscal. Outro (abuso de) poder de dar uns empurrões, quando não uns tapas na cara do ambulante. Assim, com a devida parcela de sadismo, o sujeito do colete fluorescente desconta neles um pouco desse ressentimento de ser explorado sem ter a quem explorar. De ser mandado sem ter em quem mandar. De ter que trabalhar dentro da ordem, sem poder burlar. O ambulante não é a vítima em questão, ele está de olho na estação principalmente para se poupar disto.

Há um tempo, venho observando um movimento diferenciado de ambulantes que desfilam pelos vagões de blusas azuis, onde se lê: "amigo do trem". Eles foram cadastrados e autorizados pela SuperVia a vender suas mercadorias de forma legalizada nos trens. Se há os amigos, na minha percepção, todos aqueles não cadastrados são necessariamente os inimigos. O amigo acima é inimigo, porém não quer inimizade, só quer vender seu chocolate.

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