Contraprestação

Os olhos tremulavam, daqueles olhos que não conseguem se concentrar em um foco, pois a realidade a ser capturada é tamanha e não há tempo suficiente para absorver tudo. Ela veio em minha direção com aquele olhar em eterno terremoto, percebi tudo: vai me contar uma história sem pé nem cabeça e era tarde demais pra evitá-la, eu já tinha retribuído o olhar - aliás, sabe-se lá se o meu não treme um pouco também?
Porém nenhuma história. Veio a mim e perguntou qual ônibus eu pegaria. "Caxias-Méier". "Batata!" ela deve ter pensado. "Eu vou pegar esse também..." (oh shit!) "... Faz o seguinte, eu tenho esse cartão especial, mas ele só passa se eu estiver acompanhada..." (mentira, eu sabia que não funcionava assim) "... Aí, você passa, eu passo e pronto."
Na minha gritante ingenuidade, aquela senhora desacompanhada - que é a realidade de muitos em sua condição - queria me oferecer uma passagem gratuita, já que em algum canto da burocracia estatal, ela foi avaliada e considerada "especial" o suficiente para portar aquele pessoal e intransferível cartão. O que garantia seu deslocamento gratuito pela cidade. Sabe como é, os loucos também têm o direito de viajar, embora na regra do cartão especial, isso limita-se a oito passagens/dia nas linhas municipais e intermunicipais desta famosa cidade.
Bom, foi um convite/demanda/ordem irrecusável. Inicialmente até tentei convencê-la de que não precisaria daquilo, porém eu não notei que eu fui a escolhida daquela manhã. O ônibus se aproximava e ela iria fazer de tudo para os fatos ocorrerem justamente como ela planejou. Dei sinal, o ônibus parou. Ela se jogou na minha frente, repetindo pela quinta ou sexta vez de que ela iria passar o cartão e eu passaria pela roleta como sua acompanhante; subiu na minha frente; passou o cartão. Aquela altura eu estava mais constrangida do que interessada em propor o contrário a ela. Passei na roleta, a cobradora nem deu sinais de desconfiar da fraude, talvez ela soubesse que eu não acompanhava aquela senhora solitária na sua loucura diária, mas sabia, mais do que eu, que não valeria a pena discutir, ela perderia. Caminhei pro primeiro assento que vi. Dez segundos depois, aqueles olhos cruzam novamente com os meus, em seguida, a indagação: "Filha..." (já criamos parentesco) "... É porque assim, você não teria dois real pra me dar, não?"
Ah! Não há almoço, nem passagem grátis nesse mundo cão. Na hora não deu pra pensar muito. A solidariedade deve ser realmente limitada àqueles que querem ter bom coração ou ao menos a consciência leve. E o que esta senhora tinha? Uma absurda vontade de comprar um cigarro, um café? Sei lá, ela só não precisava provar pro mundo nenhuma bondade, tá aí talvez sua maior honestidade, mais real que a de muitos filantropos mundo a fora.
Peguei as moedas que tinha, deviam somar um pouco mais de dois reais, entreguei a ela. A corrupção estava feita e a minha dívida paga.

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